quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Amnésias temporárias, esquecimentos eternos e o sorriso de despedida do clown antigo.

Mês passado, quando viajava de Conquista para Salvador, deixei meu celular no ônibus da empresa que embarquei. Amnésia ou esquecimento?!

Foi um sufoco recuperá-lo, mas tinha a certeza de tê-lo deixado no banco do ônibus em que viajei. Ainda na rodoviária, liguei para a garagem da empresa e, com dois demorados dias, fui pega-lo. A busca pelo celular me trouxe algumas reflexões que gostaria de compartilhar com vocês.
Para começar, a garagem da empresa ficava perto da Estação Pirajá, próximo ao subúrbio rodoviário, numa região bem afastada do centro de Salvador. Pela janela do ônibus, podia se notar tantos quadros das realidades do Brasil Tropical diante de tanta pobreza, acomodação e do descaso evidentes com o ser humano, principalmente baianos, nortistas e brasileiros.
Recuperado o celular, a viagem de volta pra casa foi mais longa. Do alto, avistava-se toda a orla soteropolitana e, bem perto dos meus olhos, os Alagados, com suas famosas palafitas.
Via-se ainda crianças jogadas naquelas casas submersas, muitos jovens acomodados e já criando seus filhos, inúmeros adultos e idosos morrendo de sonhos e fome.
Não, este não é um texto feito para nenhuma campanha política ou publicitária, pode até soar falso, mas trata-se de uma tentativa de reflexão sobre a abrangência da arte (questionadora e crítica) para a população.

Será que a nossa arte atinge essas pessoas? Estamos comprometidos com uma arte de transformação ou de reprodução? Até que ponto eu, como artista, modifico a minha realidade através da minha arte?! Que arte é essa que serve só pra divertir?!

Voltei pra casa com todas aquelas imagens e idéias na cabeça pensando em contribuir mais com essas pessoas. Sinto um pouco realizado por desenvolver e possibilitar o acesso a um teatro questionador a jovens da periferia da minha cidade, através do Projeto Arte para a Comunidade, do Centro de Cultura. Ano passado, tive a oportunidade de trabalhar diretamente com jovens e crianças da periferia de Salvador, na Fundação Cidade Mãe. Ministrava aulas de teatro no Bairro da Paz, um dos bairros mais violentos e pobres da capital baiana. Nessa troca de afetividade, auto estima e questionamentos pude aprender muito mais que ensinar e perceber que a vida real não é uma encenação, exige-se pressa, toque, olho no olho, energia e verdade!

Como artista, tive toda uma formação ligada diretamente ao povo pobre e sofrido da caatinga, uma gente batalhadora, alegre e decente. Trabalhei quase 10 anos com as CEB´S - Comunidades Eclesiais de Base, ligadas à Igreja Católica, na zona rural de Conquista.
Nossas reflexões, naquela época, eram para transformar a nossa realidade através do teatro, da evangelização e da solidariedade. Foram muitos trabalhos em prol de uma causa missionária, e vale a pena lembrar, sem nenhum tipo de remuneração ou pagamento por isso.

Hoje em dia, alguns artistas pensam primeiro no tamanho do cachê, depois na contrapartida social, como se diz nos projetos destinados a Fundação Cultural ou a empresas de captação de recursos. Afinal, a arte virou comércio, sobrevivência, ideal, ou passatempo?!
O que não suporto é o falso compromisso de pessoas, empresas, políticos e artistas que afirmam amor e devoção às causas dos pobres e necessitados. Onde estão os projetos para um teatro transformador, de acesso a todos? E os investimentos destinados a ele?
Posso falar em bom tom e sem falsa modéstia que experiências como as das Ceb´s, e outros trabalhos que desenvolvi e ainda desenvolvo, me deixam com a sensação de orgulho e dever cumprido como artista (catingueiro) comprometido com a arte.
Mas a muito ainda por fazer e não depende só da iniciativa de artistas conscientes.
Lembro que, uma vez, algumas pessoas de Conquista, quando souberam que eu vinha do teatro de grupo, de igreja, ligado à zona rural, rabeavam os olhos e questionavam ao colega urbano, do lado: “O que esse menino do Guigó quer aqui no meio de nós?!” “Onde já se viu, teatro na roça?!” “Gente, eu pensava que o povo do Guigó só sabia plantar?!!”

Mas aquele menino do Guigó, região rural de Conquista, ou melhor, o distrito de José Gonçalves, cresceu e hoje o seu projeto de mestrado falará justamente do teatro popular, suas variações e resistência na região sudoeste da Bahia e também, da importância de ações de artistas comprometidos com a sua região e seus valores. Amnésia ou esquecimento?

Quero também mencionar nesse ensaio sobre a amnésia, mal que aflige a muitos conterrâneos meus, que o esquecimento é algo cruel e triste.
Triste como a morte do artista Charles Cerdeira, conhecido palhaço de Conquista que, numa hora qualquer saiu de cena sem nos avisar. Sua despedida repentina deixou todos com questionamentos sobre esse ofício-sacerdócio de ser artista nessa cidade-estado-país de valores tão desconexos em relação à arte e os seus profissionais.
Será que uma vida inteira de sacrifícios vale uma morte tão triste?

Hoje, tento lembrar de tudo o que fiz na vida, para depois não correr o risco de tentar esquecer o que não quero lembrar.
Quero lembrar, por exemplo, de tantas pessoas que passaram pelo meu teatro, que se encontraram na vida e hoje lutam pelo seu espaço, quero lembrar dos meus alunos, amigos, jovens, crianças e idosos que um dia, cantaram comigo na mesma roda da vida, quero lembrar não dos cachês que ganhei, mas do suor e sangue derramados por conquistas pessoais e coletivas, quero lembrar do engajamento político que resgatei como artista que reclama e briga pelos seus direitos e pela ética profissional do meu ofício e quero lembrar, em especial, do palhaço amigo que, com seu eterno sorriso e aquele ar questionador que tinha, deixou o picadeiro para animar outras platéias. A sua saída de cena não será esquecida, bem que podia ser adiada, mas como sabemos, o nosso picadeiro real é mais triste que alegre e o sorriso de um clown, muitas vezes, escondem suas lágrimas e sofrimentos. (...)

Que as lembranças verdadeiras jamais sejam esquecidas, que os esforços por causas justas sejam sempre reconhecidos, que a arte sempre vença as dificuldades e tristezas e que as amnésias não apaguem as nossas preocupações com a miséria, a mentira e a doença.
E hoje tem espetáculo? Tem sim, senhor! E o palhaço o que é?!
Um ser humano como outro qualquer.
Marcelo Benigno set/2003 SSA

Nenhum comentário: